VII) Ulm, Alemanha. O jovem francês se encontra engajado
nas tropas do Duque Maximiliano da Baviera. É dia 10 de novembro de 1619, o dia
da epifania cartesiana. Descartes desvela os fundamentos de uma "ciência
admirável, capaz de unificar o conhecimento humano a partir de bases
seguras, feita de certezas racionais".
"Ficava todo o dia fechado sozinho num cômodo
aquecido por uma estufa, onde dispunha de todo o tempo para me entreter com
meus pensamentos" (Discurso do Método).
Concepção unitária -
Um engenheiro, um único espírito atento às exigências da razão. Um
desses pensamentos perquiria o artífice e sua obra: como "as construções
começadas e concluídas por um único arquiteto são geralmente mais belas e mais
bem ordenadas que aquelas que vários esforçam-se por reformar, servindo-se de
velhas muralhas que haviam sido construídas para outros fins".
VIII) Século
XVI, época marcada pela paixão pelas descobertas e concepções
opostas às que prevaleceram na idade média. Nova geografia do mundo (outros
povos, outras verdades) e renascimento da antiguidade greco-romana; abalo na
unidade política e religiosa da Europa (movimento da Reforma). Tudo isso
estimulava à reflexão e a dúvida.
Ceticismo - Pensadores
que expressaram o clima de ceticismo da época: Agripa
de Nettesheim (1487-1535), incerteza das ciências; Francisco
Sanches (1552-1632), a dúvida como recurso metodológico; Michel
de Montaigne (1533-1592), renúncia à certeza aparentemente
inatingível; Pierre Charron
(1541-1603) extrai do ceticismo sua defesa da fé;
A Via - hódos, do grego: o método. Duas vias:
1. A via empirista, Francis
Bacon (1561-1626), ciência se faz pela observação e
experimentação, leis indutivas, casos particulares para se chegar a
generalizações;
2. A via da razão,
exemplificada pelas matemáticas.
IX) Os
Descartes eram uma família de burgueses dedicados ao comércio e à
medicina. Unidos a outras famílias, tornaram-se proprietários de terras. Nasce
em 1596. Em 1606, começam seus estudos no colégio jesuíta de La
Flėche. A base de leitura era o lectio,
leitura e explicação de textos antigos, e a erudição (grego, latim, história e
fábulas); num segundo estágio, eloquência, poesia e filosofia e, finalmente,
filosofia (lógica, física, metafísica e moral), e suas aplicações, medicina e
jurisprudência. Sob fortes tradições conservadoras, Descartes conviveu com uma
mentalidade imbuída de religiosidade e de submissão às instituições
monárquicas. A partir de 1624, o Cardeal Richelieu (1585 – 1642) tomava
as diretrizes da política na França (na sequência: Henrique IV (1553 – 1610),
Luís XIII (1601 – 1643), e Richelieu). Floresceu a burguesia,
multiplicavam-se as manufaturas e os engenhos mecânicos.
XI) A
Matemática - "Desencantado com
a instabilidade e a inutilidade prática das letras", ingressa na carreira
militar e serve sob o comando de Maurício de Nassau (1604 - 1679). A
matemática o atraía com as certezas de seus encadeamentos e as sólidas
evidências de suas razões. Mas também logo lhe pareceu básica para um campo
limitado de aplicações (da mecânica) e, apesar da grande riqueza racional, elas
nada ofereciam de fundamental para os problemas da vida. Ainda assim,
acreditava que poderia haver um acordo entre as leis matemáticas e as leis
da natureza, atualizando "o antigo ideal Pitagórico de desvelar
a teia numérica que constitui a alma do mundo". Em 1619 ingressa na
confraria Rosa Cruz (caracterizada por uma mística racional).
XIII) O filósofo mascarado.
Sua obra Traité du Monde et de la
Lumière tem a publicação suspensa quando Descartes fica sabendo da
condenação de Galileu (1564 – 1642),
motivada pela tese do movimento da terra, a qual também havia aderido.
Descartes parece se exprimir intencionalmente de forma ambígua, evitando assim
represálias da igreja. Mas tarde volta a publicar alguns tratados em francês,
a língua vulgar, uma novidade numa época ainda marcada pela latinização
unificadora da cultura herdada dos medievais.
Em 1641,
publica Méditations sur la Philosophie Prémière,
objetada por Hobbes (1588 – 1679), e outros
filósofos da época. Em 1649, publica
Traité des Passions.
Em 1650, com pneumonia, vem a falecer em Estocolmo onde esteve a convite da
Rainha Cristina da Suécia.
O essencialismo cartesiano:
"Nos Princípios da Filosofia Descartes compara a sabedoria a uma árvore
que estaria presa ao domínio do ser, à realidade, por meio de suas raízes
metafísicas". "O tronco da física sustenta-se em raízes
metafísicas". A seiva circula como uma essência que permanece. Em Meditações
V, Descartes reformula o argumento ontológico que pretende afirmar a
existência de Deus a partir da ideia de Deus (Ser perfeitíssimo). Sendo assim,
sua existência entendida como pura perfeição, implica que há uma essência que
permanece (um Bem), enquanto transpassamos por diferentes graus de perfeição.
XIV) A
reformulação do conhecimento: Descartes busca unificar, com auxílio do instrumental
matemático, o vasto campo dos conhecimentos ainda dispersos em frágeis
construções isoladas. Para tanto se torna necessário dirimir as dúvidas que
perpassam o universo cultural de sua época. E assim, se dispõe a duvidar
metodicamente de tudo. Percebe que (1.) as
certezas com relação aos objetos físicos são instáveis e obscuras; (2.) as
certezas matemáticas lhes parecem nítidas e estáveis; concebidas por todos,
independentemente das experiências dos sentidos (individuais e mutáveis) de
cada sujeito isolado, "constituindo o substrato inato da pensée".
O método: concebido a partir desse ideal
matemático, universal, como uma cadeia de razões, intuídas com clareza
de evidências, interligadas com a coerência perfeita das demonstrações
- aplicadas a qualquer objeto - forjaria a tessitura de ideias claras e
precisas, da verdadeira sabedoria. As ideias se impõem com força de
evidência. Ainda que subjetivas, se apresentam como algo real.
A dúvida hiperbólica: a
dúvida ampliada ao máximo (até mesmo das ideias ‘claras e distintas’).
Le malin génie (o
gênio maligno): este aparece como uma alegoria que se
refere ao real valor dos conhecimentos científicos. Na consciência subjetiva do
homem, a ciência aparece como uma representação e nada garante
que ela possua um correspondente no mundo objetivo. A hipótese desse gênio
maligno deixa pairar sobre o universo científico a possibilidade de que este
seja apenas uma ficção, "um sonho", muito bem concatenado.
XV) O cogito:
a dúvida é estendida à sua máxima dimensão (hiperbólica), para os diferentes
níveis a qual é aplicada - "das ideias obscuras provenientes de impressões
sensíveis às ideias claras universais". A dúvida permite extrair certo
núcleo de "certeza", que cresce à medida que se repetem os
questionamentos próprios à sua elaboração, reforça-se na experiência daquele
que duvida, o que resulta numa maior clareza naquilo que se torna evidente.
O projeto
cartesiano: Em "Geometria" (1637), Descartes
afirma: "em matéria de progressões matemáticas, quando se tem os dois ou
três primeiros termos, não é difícil encontrar os outros". "Essa ideia
de uma ordem natural, inerente à progressão do conhecimento, é
fundamental para o projeto cartesiano de construir uma "matemática"
universal". Baseia-se numa cadeia de razões que conduz o termo
desconhecido (um termo relativo a outros termos), para que seja descoberto.
Os preceitos para o termo verdadeiro: o
preceito metodológico básico apontado por Descartes é que, por nos encontrarmos
diante de uma ciência representativa, será preciso que o termo
verdadeiro seja aquele considerado evidente,
intuído com clareza e precisão.
Os preceitos metodológicos complementares: além
do preceito básico, permeável pela evidência, Descartes aponta três
outros preceitos metodológico complementares ou preparatórios:
1. o preceito
da análise (dividir cada uma das dificuldades em partes para
serem resolvidas);
2. o preceito
da síntese (conduzir com ordem o pensamento, partindo do
simples, gradativamente, para o mais complexo);
3. o preceito
da enumeração (enumerar para que nada seja omitido).
Sob estes três ou quatro imperativos da razão, Descartes aponta que para que haja
objetividade no conhecimento científico, será igualmente necessário a máxima
exacerbação da dúvida (hiperbólica). A máxima incerteza aponta para a
primeira certeza: "se duvido, penso". Um primeiro elo na
cadeia de razões. A dinâmica inerente às séries de termo dispostos
racionalmente (como as progressões matemáticas) leva à inevitável explicitação
do cogito, ergo sum
(penso, logo sou). A princípio, o eu dependente do pensamento.
O duplo sentido:
1. O paradigma da evidência plena: as intuições deverão suceder-se
numa visão clara da realidade, tudo que for afirmado deverá conter a mesma
certeza de "penso, logo sou";
2. No plano metafísico, o cogito, representa a ponte que separa
o abismo entre a subjetividade e a objetividade, o encontro, pelo pensamento
(res cogitans), de algo que subsiste, de
uma substância (res extensa).
Partindo do já conquistado, da certeza do cogito, do
'eu' enquanto ser pensante, "Descartes procura provar a existência de Deus, garantia última de qualquer
subsistência e, portanto, fundamento absoluto da objetividade".
XVI) A sugestão platônica
reaproveitada por Santo Agostinho: o fundamento da realidade é bom,
conhecer é um bem, o conhecer científico, epistêmico, pode corresponder ao ser
(o que é), ao sumo Bem. O Sol torna os objetos inteligíveis, os sujeitos
capazes de intelecção, a ciência uma construção clara sobre a realidade.
Meditações III -
Descartes "prova" a existência de Deus.
Principio da causalidade. A causa
(um deus infinito e perfeito), explica o efeito (o
homem finito e imperfeito, porém dotado da ideia de infinitude e perfeição).
Meditações V - O
argumento ontológico. A relação entre duas
substâncias: a ens infinita
(Deus) e a res cogitans (o pensamento). Segundo
Descartes, só a existência de Deus, perfeitíssimo, justificaria a ideia inata
de Deus na mente humana, e conclui afirmando que só a existência de um bom Deus
é o que não nos permite o erro sistemático do espírito humano, o que justifica
o otimismo científico e crença na razão. A evidência se torna critério de
verdade: "às ideias claras correspondem de fato às realidades". "Deus cartesiano é, assim, a garantia da
objetividade do conhecimento científico".
O máximo de clareza subjetiva corresponde o cerne da objetividade.
XVII) Meditações VI - o
mundo físico, representado por ideias obscuras, originadas de impressões
sensíveis. Nele, os preceitos metodológicos da evidência não são aplicáveis.
Sua existência deve ser "comprovada através de etapas sucessivas, numa
forma de argumentação por aproximações que representam um crescer de certezas
(o mundo exterior primeiramente é possível; se torna provável a
medida que avançam os argumentos e, finalmente, certo).
"Deus
serve de apoio para retirar do domínio da dúvida o conhecimento relativo aos
corpos".
A onipotência
divina sustenta a base da existência do mundo físico. Ele é
criação de um ser que tudo pode. Há no pensamento uma ideia clara referente ao
mundo físico, a res extensa
(de extensão); "ideia de algo dotado de grandeza e forma", mas não
que haja uma realidade extensa, mais porque Deus existe como garantia dessa
objetividade.
Deus (ens infinita) a ponte entre duas certezas: da certeza da existência do pensamento (res cogitans), para a certeza da existência do mundo físico (res extensa). Eu penso e tenho um corpo (corpo/alma).
Deus (ens infinita) a ponte entre duas certezas: da certeza da existência do pensamento (res cogitans), para a certeza da existência do mundo físico (res extensa). Eu penso e tenho um corpo (corpo/alma).
XVII) Deus
garante o conhecimento científico a partir de ideias claras e precisas.
A física cartesiana resulta de construções abstratas regidas pela razão.
Um mundo como
extensão, essência da corporeidade. O mundo físico,
finito e pleno. Sua matéria seria dividida em partículas perfeitamente
contínuas, não existiria o vazio. Partículas de matéria a mover-se
retilineamente (princípio de inércia), numa situação ideal, de pura
racionalidade.
XIX) Tradição
platônica: Descartes concebe o mundo físico como "deformado de um
modelo ideal de universo, apenas alcançável pelo puro intelecto".
Julgamento de Galileu - Processo da Inquisição.
Moral provisória: "a arte de ser feliz". A pretensão de criar um 'matemática universal'
está contida no ideal de uma sabedoria guiada pela razão, porém, "a
urgência da ação demanda a aceitação de imposições puramente factuais", e
diante das dúvidas que possam persistir nos julgamentos que se façam das
coisas, se recomenda uma moral de conformismo social e obediência às leis.
Aqui vale lembrar a sugestão de prudência, a qual se submeteu o filósofo,
diante das aflições de seus contemporâneos Giordano Bruno (1548 – 1600) e
Galileu Galilei (1564 – 1642).
CONTINUA:
René Descartes, Meditação I
René Descartes, Meditação II
René Descartes, Meditação III
CONTINUA:
René Descartes, Meditação I
René Descartes, Meditação II
René Descartes, Meditação III
[1] Descartes, René (1596-1650).
Meditações; introdução de Gilles-Gaston Granger; prefácio e notas de Gérard Lebrun;
Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Junior. - 3. Ed. - São Paulo : Abril
Cultural, 1983 Os Pensadores.
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