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sexta-feira, 3 de outubro de 2014

René Descartes, Meditação I - Duvidando para recomeçar

Meditações I.[1]

Resumo: "Na primeira Meditação, adianto as razões pelas quais podemos duvidar de todas as coisas, e particularmente das coisas materiais". Segundo Descartes, a dúvida "nos liberta de toda sorte de prejuízos" (DESCARTES, 1983, 79) e acostuma nosso espírito a desligar-se dos sentidos (carregado de falsas impressões) para que, enfim, encontre-se naquilo que é impossível de duvidar, ou seja, aquilo que é mais verdadeiro. 

Neste capítulo, Descartes apresenta o objetivo do projeto inicial: estabelecer dúvida como critério para a renovação de conceitos; a partir do exame crítico do conhecimento, expõe seu método de investigação científica procurando encontrar algo firme e forte na ciência - "claro e distinto" - o caminho para a verdade.

Treze parágrafos encerram o primeiro livro das Meditações:

1) Duvidando para recomeçar: em favor da dúvida, Descartes alega estarmos há muito mal fundamentados em nossas razões, pois quase tudo aquilo que aprendemos "desde meus primeiros anos" não passam de falsas opiniões tidas como verdadeiras. "Aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto". E propõe começar novamente, desde os fundamentos, de forma a "estabelecer algo de firme e de constante nas ciências".

2) A dúvida em ação: o menor motivo de dúvida bastará para que a coisa fundamentada em antigas opiniões já não lhe pareça inteiramente certa. E, refletindo, a partir dos princípios, a base das "coisas que não são inteiramente certas e indubitáveis", põe a dúvida em ação:

Liberdade da indiferença (ou liberdade para duvidar):
estado psicológico positivo: poder de escolha e suspensão de juízo; 
estado psicológico negativo: hesitação entre escolhas rivais por conta da carência de conhecimento.

I. Livre para duvidar: modalidade da liberdade da indiferença, o 'duvidoso' (suspensão de juízo) é diferente de afirmar como 'falso' (juízo 'afirmativo' acerca de um valor de verdade); 
II. Dúvida vulgar e provisória: engendrada pela experiência;
III. Dúvida metódica: por decisão racional, busca um princípio certo e seguro para o fundamento da certeza; antigas opiniões são substituídas por evidências; dirigi-se à causa, a fonte das opiniões;
IV. Radical: será hiperbólica, isto é, sistemática e generalizada; tratar como falso o que é apenas duvidoso; enganador, o que alguma vez já enganou (regra de prudência);
V. Universal: pretende colocar em questão todos os princípios dos quais se originaram antigas opiniões (nos sentidos, na imaginação e nos equívocos da razão); dúvida a partir da causa.

3) Argumento do erro dos Sentidos (primeiro grau da dúvida: os sentidos em questão): regra da prudência que visa atingir os sentidos: "Tudo que recebi, (...) aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos" (...) "experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos". Logo, os sentidos são enganosos. Juízos (com valor de verdade) são formados a partir das experiencias sensíveis, contudo parece haver uma falta de consenso sobre a qualidade dos corpos experimentados e, para Descartes, isso basta para nos fazer duvidar sistematicamente de nossas percepções sensíveis.

Radicalizando a dúvida

4) Argumento da Loucura (argumento singular): segundo grau da dúvida, visa atingir a imaginação, as ideias fictícias que têm origens nos sentidos do indivíduo que pode ser um insensato ou louco. A loucura como particularidade de alguns. O argumento visa colocar em questão o juízo acerca da existência dos corpos, da realidade objetiva, da ideia a partir de um ponto de vista particular, relativizante, do sujeito pensante que percebe (entende) e age (escolhe) de acordo com a vontade: 
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IDEIA, segundo alguns termos utilizado por Descartes:
I.  modos elementares de 'substancias pensantes' cujo atributo principal é o pensamento;
II. a forma do pensamento (realidade formal), exibe um conteúdo mental à consciência;
III. toda ideia têm uma realidade atual ou formal (conteúdo do pensamento, 'sendo o próprio sendo', Deus) e uma realidade objetiva (o entendimento).
IV. possuem uma realidade objetiva: o conteúdo do ato exibido pela ideia, o entendimento; 'a representação' (inferência) do objeto como imagem da coisa ou do conteúdo mental que é exibido à consciência (particular); não uma cópia/reprodução, mas uma representação da realidade formal.
V. ato modo do pensamento, modo objetivo.
VI. "toda ideia uma obra do espírito, sua natureza é tal que não exige de si nenhuma outra realidade formal além da que recebe e toma de empréstimo do pensamento ou do espírito, do qual ela é apenas um modo, isto é, uma maneira ou forma de pensar". (MD III, parag 17).

Entendimento: consciência de si; a faculdade passiva de perceber ideias (conteúdos, essência possível);
Vontade: a faculdade ativa de ação; e age de acordo com o juízo (V, F ou SJ 'suspensão de juízo'), deliberado a partir das ideias percebidas pelo entendimento;
Razão: 'substancia pensante' cujo atributo principal é o pensamento.
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Conclusão:
- Quantidade: a coisa existe ou não existe (ordem natural); as percepções sensíveis são fontes confiáveis para formarmos juízos sobre a existência dos corpos.
- Qualidade: a qualidade das coisas (ordem humana); as percepções sensíveis NÃO são fontes confiáveis para formarmos juízos sobre as qualidades sensíveis dos corpos.

5) Argumento dos Sonhos (argumento universal) e verossímil: ''sou homem", sujeito comum (a faculdade da imaginação ampliada para todos os homens). Descartes considera que o homem dorme e que representa em seus sonhos. Ainda que o que ocorra no sono não pareça ser tão claro e distinto, muitas vezes se viu enganado. Não há "marcas" ou "indícios concludentes" que separem a vigília do sono.

6) Argumento dos Quadros e Pinturas (o sonho como representações): "as coisas que nos são representadas durante o sono são como quadros e pinturas" formadas à semelhança de algo real e verdadeiro. Descartes presume que exista algo de verdadeiro (quantidade, figura e extensão) e que a imaginação é capaz de criar arbitrariamente (ato particular da razão), a partir de mistura e composição (ideias adventícias e fictícias). Na representação do 'sonho' encontramos o elemento simples, das ideias gerais, assim como nas 'cores' da pintura; os dois escapam a arbitrariedade na composição, diferentemente da imaginação, fonte não confiável para obtenção de conceitos.

7) Argumento das Coisas Simples (as 'cores' e a 'matemática'): há coisas simples e universais que são verdadeiras, indecomponíveis, as cores (em todas as imagens) e os objetos da matemática ( "a natureza corpórea e sua extensão": quantidade, grandeza, número, "espaço e o tempo que mede sua duração"); estas escapam aos objetos sensíveis, "a todas as razões naturais de duvidar" (...) "as naturezas simples" (coisas gerais); mais adiante, respaldado no andamento metódico alcançado na quinta meditação, Descartes escreverá: "A natureza de meu espírito é tal que eu não me poderia impedir de julga-las verdadeiras enquanto as concebo clara e distintamente". 

8) A Matemática: as ciências da natureza "dependentes da consideração das coisas compostas são muito duvidosas e incertas"; mas a aritmética e a geometria, "muito simples e muito gerais", contêm alguma coisa de certo e indubitável. Segundo Descartes, acordado ou dormindo, "dois mais três formarão sempre o número cinco e o quadrado nunca terá mais de quatro lados".

9) Argumento do Deus enganador (terceiro grau da dúvidavisa atingir a razão): a partir do argumento matemático, que comprova a natureza distinta do meu espírito, a dúvida se estende às intenções do próprio Deus. "Pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três". Essa opinião é sustentada pelos teólogos da época e é questionada nas segundas objeções: "Deus, dada a sua onipotência, pode nos enganar"; como? Naquilo que acreditamos saber: as coisas simples e universais.

10) Argumento Ontológico (dirigido aos ateus): se em Deus encontro alguma imperfeição (falha ou engano), quanto menos for poderoso, ele, a quem atribuo minha origem, "mais será provável que eu seja de tal modo imperfeito que me engane sempre" - destaque para o engano sistemático da razão, um defeito intrínseco ao homem - mas esse não é o parecer do filósofo, o argumento é puramente metodológico. Para Descartes, o engano em Deus constituiria um sinal de não-ser, e só existem duas possibilidades de engano: na apreensão (sentidos), e na produção, (imaginação), resultando nos equívocos da razão.  

Logo, a dúvida é universalizada e os juízos são suspensos. Descartes parece duvidar de todas as opiniões outrora recebidas como verdadeiras, e assim decide suspender os juízos adquiridos sobre tais pensamentos, porquanto deseja "encontrar algo de constante e de seguro nas ciências".

11) Divino Bom Senso: ciente das próprias crenças e dos hábitos nelas embutidos, como que intuído por um divino bom senso moderador que a razão é capaz de conduzir, Descartes mostra-se empenhado à duvida constante como uma modalidade da liberdade da indiferença, ou seja, para não mais se deixar enganar: "e meu juízo não mais seja doravante dominado por maus usos e desviado do reto caminho que pode conduzi-lo ao conhecimento da verdade". E assim, considerar o bom senso, na prática, o provável; na teoria, considerar o improvável.

12) Argumento do Gênio Maligno: (le malin genie, alguma entidade particular, relativa ao sujeito, "um artifício psicológico", talvez, uma teimosia cega, extrema, um excesso ou falta do sujeito da ação, em síntese: o engano sistemático da razão): "Há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte de verdade, mas certo gênio maligno" [poderoso, ardiloso e enganador] (...) "todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos". Com esta conclusão peremptória, Descartes intenciona suspender os juízos de crenças outrora acalentadas, não se dispondo mais a receber nenhuma falsidade. Sua proposta de radicalizar a dúvida, na verdade, é um estímulo para que o pensamento busque alcançar a clareza das certezas inabaláveis.

A relação entre os argumentos: o argumento do gênio maligno está para o argumento do deus enganador, assim como o argumento da loucura está para o argumento dos sonhos: em síntese, o gênio maligno e a loucura se referem às partes e, o deus enganador e os sonhos, ao todo.

13) Declaração do autor que reafirma sua tarefa árdua na busca por algo firme nas ciências, e alcançar o puro intelecto é a operação da razão perfeitaem Deus a causa perfeita; no engano, a causa imperfeita. Descartes encerrando a primeira meditação, parece brincar conosco quando recupera do texto platônico, o mito da caverna, as mesmas dúvidas e questionamentos hesitantes que se opuseram àqueles escravos diante da possibilidade iminente de serem libertos: o medo do "despertar dessa sonolência"... "não fossem suficientes para esclarecer as trevas das dificuldades que acabam de ser agitadas".

ContinuaRené Descartes, Meditações II - A natureza do espírito humano
Texto Completo: René Descartes (1596 - 1650)
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[1] Descartes, René (1596-1650). Meditações; introdução de Gilles-Gaston Granger; prefácio e notas de Gérard Lebrun; tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Junior. - 3. Ed. - São Paulo : Abril cultural, 1983 (Os Pensadores).

2 comentários:

  1. Ótimas análises, ajudou bastante! Parabéns pelo trabalho, abraços

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  2. PERFEITO RUI!

    Analise perfeita, texto limpo e explica mais do que qualquer aula de um especialista no texto. Agora a minha segunda leitura do texto vai ser bem mais a vontade com o tema e as propostas do filósofo.

    Ass: Alisson Cardoso

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