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sexta-feira, 3 de outubro de 2014

René Descartes, Meditação II - A natureza do espírito humano

A natureza do Espírito humano, mais fácil de conhecer do que o Corpo[1]

Na Segunda Meditação, o espírito, que supõe não existir qualquer coisa em que haja a menor dúvida,  reconhece que ele próprio existe. O autor fará uma distinção entre as diferentes naturezas 1. intelectual (incorpórea e indivisível, a alma) e 2. física (corpórea e divisível, o corpo), diversas e contrárias. "Da corrupção do corpo não decorre a morte da alma". O corpo é formado e composto de "membros e outros acidentes semelhantes"; a alma humana não é composta de acidentes, "mas é pura substância".

O argumento da alma imortal: ainda que a alma "conceba certas coisas, que ela queira outras, que ela sinta outras, etc, é, no entanto, sempre a mesma alma; ao passo que o corpo humano não mais é o mesmo pelo simples fato de se encontrar mudada a figura de alguma de suas partes. Donde se segue que o corpo humano pode facilmente perecer, mas o espírito ou a alma do homem é imortal por sua natureza" (DESCARTES, 1983, 80).

Dezoito parágrafos completam o segundo livro das Meditações:

1) A dúvida em ação (no sentido epistêmico): Descartes atem-se preso ao método. Prossegue trilhando o mesmo caminho encontrado na primeira meditação, tendo como se fosse absolutamente falso, aquilo que possa conter a menor dúvida. E assim segue radicalizando "até que tenha encontrado algo de certo".

2) Ao encontro da primeira certeza (um ponto fixo e seguro): Descartes cita Arquimedes lembrando que este buscou um ponto que fosse fixo e seguro. "Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais que exceto um ponto que fosse fixo e seguro". Descartes também procurava encontrar somente uma coisa que fosse certa e indubitável.

3) Negação dos sentidos como fonte de conhecimento (suspensão de juízo ou estado negativo de indiferença): neste parágrafo o filósofo sintetiza os resultados alcançados na primeira meditação, o de que todas as coisas apreendidas pelos sentidos são falsas (falta objetividade nas representações sensíveis), (...) "Todas as coisas que vejo são falsas". Há representações, mas "Nada há no mundo de certo".

4) A primeira certeza (eu sou, eu existo): ainda que coisa alguma exista, apenas, talvez um deus enganador empenhado em enganar-nos sempre "ponha no meu espírito tais pensamentos?" Certamente não. Após negar a possível influência de um deus enganador, Descartes então insinua um "Eu" sujeito de inerência do pensamento capaz de ter representações: "Talvez seja eu capaz de produzi-los [pensamentos] por mim mesmo". Conclui que esse "Eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas, pensei alguma coisa"; "e, por mais que me engane, não poderá fazer com que nada eu seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa". A "proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a anúncio ou que a concebo em meu espírito" (enquanto penso, em ato, de imediato).

A construção do argumento:
1. no inicio do parágrafo quatro, Descartes rejeita a possível influência de um deus enganador;
2. ciente das representações: sugere um "Eu" sujeito de inerência do pensamento capaz de ter representações;
3.  renega os sentidos: a objetividade dessas mesmas representações, "neguei que tivesse qualquer sentido ou qualquer corpo; 
4. questiona se poderia existir sem o corpo: "não me persuadi também, portanto, de que eu não existia?";
5. algo existe: afirma então que existia sim, mesmo sem a certeza do corpo "eu existia sem dúvidas"; 
6. e, ainda que fosse enganado enquanto existia, afirma que existia: "e por mais que me engane [o deus enganador], não poderá fazer com que eu nada seja";
7. arremata então sobrepondo o império da razão, do espírito sobre os sentidos: "enquanto eu pensar ser alguma coisa";
8. logo, conclui: a "proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a anúncio ou que a concebo em meu espírito"; enquanto penso nela atualmente, em ato; logo, existo de imediato enquanto penso.

"Eu" universal: alerta Godschmidt no rodapé da página: "E doravante o Eu não será mais este Eu de Chambre e ao pé do fogo que a primeira meditação evocava".

5) Certo de que sou: aqui começa o exame das operações do intelecto para a determinação da natureza desse 'Eu' existente (sujeito pensante) que Descartes acabou de afirmar, colocando-se em confronto com a tradição tomista-aristotélica: "Eu que estou certo de que sou"; "conhecimento que afirmo ser mais certo e mais evidente do que todos os que tive até agora".


6) Distinção entre espírito (pensamento) e corpo

O pensamento: Descartes parece determinado a "suprimir tudo que pode ser combatido", permanecendo "apenas precisamente o que é de todo indubitável", o mais simples: o pensamento. E assim prevenido contra a possibilidade de que uma só questão, o conteúdo de uma ideia, possa nos levar "insensivelmente" a uma "infinidade de outras mais difíceis e embaraçosas", a uma redução infinita de termos e proposições, passa apenas a considerar o pensamento ou "os pensamentos que anteriormente nasciam por si mesmo em meu espírito [inerentes ao espírito] e que eram inspirados apenas por minha natureza".

O corpo, máquina composta que preenche um espaço, res extensa: "Por corpo entendo tudo que pode ser limitado por alguma figura (...), compreendido em qualquer lugar e preencher um espaço de tal sorte que todo outro corpo dele seja excluído; (...), que pode ser sentido; (...), pode ser movido".

7) O espírito que pensa: "Eu sou, eu existo" (exclusão do corpo). Agora existe uma ideia do Eu, que sou. Da indeterminação psicológica à determinação metafísica. Do corpo, a mercê dos enganos dos sentidos, ao espírito,que pensa (atributo da alma), "um atributo que me pertence; só ele não pode ser separado de mim".

Daí advir a primeira certeza da cadeia de razões: "Eu sou, eu existo" (em ato, a dimensão da existência: "por todo o tempo em que eu penso" - a inseparabilidade 'pensar-existir'). "É necessariamente verdadeira sempre que eu a pronuncio ou que eu a conceba em meu espírito".

A essência da substância, a 'coisa pensante': "Sou (...) uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão".

Conceitos cartesianos: o Eu cartesiano é a substância pensante e sujeito inerente do pensamento: Eu, "uma coisa que pensa". O pensamento é a essência da substância pensante. A razão é uma substância e a substância o suporte dos modos. 'Eu' tenho uma existência; a razão tem modos; atributos e modos são inerentes às coisas; o pensamento é o atributo essencial que se confunde com a própria existência. 

Graduação: para os tomistas-aristotélicos, os atributos da alma: nutritiva, sensitiva e racional; para Descartes, um único atributo: pensar. Nas respostas às sexta meditações, Descartes sugere três graus para a sensibilidade: 1. corporal (reação do movimento da matéria); 2. envolve o corpo e a consciência sensível (ato de conceber); 3. ideia puramente intelectual (ideias: passiva; juízo: ativo).

8) Imagem, impressão sensorial: o conhecimento intelectual independe da imaginação e dos sentidos. Como posso conhecer o que sou? "reconheci que eu era, e procuro o que sou, eu que reconheci ser". Em Descartes não se recorre à imaginação, "pois tudo que posso compreender por esse meio foi excluído pela dúvida". "Imaginar nada mais é do que contemplar a figura ou a imagem de uma coisa corporal"; "nada, de tudo que posso compreender por meio da imaginação, pertence a esse conhecimento que tenho de mim mesmo". Eu conheço primeiro o que penso, depois todo o resto: "Minha natureza é puro pensamento exclusivo de todo elemento corporal". A essência do corpo é pura extensão; a essência da alma é puro pensamento; mas não existem separadamente.

9) A segunda certeza: a natureza intelectual do Eu: "uma coisa que pensa"; agora revestida de seus diferentes atributos ou modos do pensamento (duvida, concebe, afirma, nega, quer, não quer, imagina e sente). 

Sentir (...) é senão pensar (eu sou puro pensamento): um pensamento puro distinto dos corpos e distinto de suas faculdades. 'Sentir' é um modo da alma que tem uma causa no corpo: "Enfim, sou o mesmo que sente, isto é, que recebe e conhece as coisas como que pelos órgãos dos sentidos"; ou seja, enquanto executo esses atos, eu posso inferir que sou o sujeito da consciência, ato de consciência: eu como coisa pensante existo como puro pensamentoMas "este poder de imaginar não deixa (...) de existir em mim e faz parte do meu pensamento [como atributo ou modo do pensamento] (..) e é propriamente aquilo que em mim se chama sentir (...) é senão pensar" (entende, imagina, sente, quer...).

Sujeito de consciência: a natureza desse 'Eu' é puro pensamento. Neste parágrafo, a indubitabilidade do sujeito da consciência (quantidade/identidade: algo existe) e não do conteúdo (qualidade: valor de verdade). O sujeito da consciência existe ainda que o conteúdo não seja certo. A consciência é o denominador comum.

10) + Contraprova: argumento contra a tradição tomista-aristotélica que afirma conhecer por questão da afecção sensível. Para o senso comum da época, o mundo corpóreo parece se apresentar mais distintamente conhecido "do que essa não sei que parte de mim mesmo" (o espírito). Descartes contrapõe alegando que há coisas "que são verdadeiras  e certas e que pertencem à minha própria natureza": o modo de  'perceber' revela uma ideia inata de extensão.

'Perceboalgo/coisa que se apresenta: quantidade/identidade (sentido lógico), algo existe. Primeiro 'penso' (e pensar é parte de mim mesmo), depois um corpo (algo/coisa), que ainda não distingo o que seja (não determino valor de verdade). A partir de uma ideia inata (o pensamento), só então formulo juízos empíricos: "vejo bem" (...) o quanto "meu espírito apraz-se em extraviar-se e não pode ainda conter-se nos justos limites da verdade"

11) O argumento da cera: um pedaço de cera, a 'percepção' de um corpo particularres extensa; indo de encontro a tradição tomista-aristotélico (o senso comum da época), que se funda na teoria da abstração de inteligíveis a partir dos corpos sensíveis, Descartes propõe uma nova contraprova: o argumento da cera. Este intui a possibilidade de um novo modelo explicativo de conhecimento diferente do modelo aristotélico. 

12) res extensa - a mesma cera permanece e se modifica (como quando aproximada do fogo): "Um corpo que um pouco antes me parecia sob certas formas e que agora se faz notar sobre outras". Mas eu sou capaz de perceber coisas diferentes, posso julgar a priori: uma ideia de extensão inata que não depende da sensibilidade (assim como na matemática). 

A ideia de um corpo extenso, inata, puramente intelectual (ter ideias e julgar), revela que há uma inteligibilidade em qualquer percepção sensível: o ato de pensar, que me possibilita antecipar mudanças. Percebo então algo que permanece, algo distinto, "extenso, flexível e mutável", a ideia de extensão do corpo, "capaz de receber uma infinidade de modificações similares". Essa concepção da matéria infinita, o ato de conceber o que é extensão e formar juízo a partir desta concepção, surge no intelecto ("sentir é senão pensar", parág 9). Descartes conclui no final do parágrafo: "essa concepção que tenho da cera não se realiza através da minha faculdade de imaginar"; ou seja, acontece a priori, precede o juízo e a imaginação.

O Modelo Racionalista (lógico): a percepção é confusa para quando conhecemos a cera dos sentidos (percepção dos sentidos), mas existe uma percepção intelectual, a priori, que indica que 1.º a "cera é sua identidade na medida em que é coisa extensa" (forma: algo extenso, flexível e mutável; puramente intelectual); 2.º "mas esse conteúdo só pode ser ideia [inata] e não imagem [cópia] da extensão que o corpo ocupa".

13) Imaginação X Ideia: não é possível conhecer pela imaginação "não poderia mesmo conceber pela imaginação" (...) "meu entendimento é quem concebe" (concebe e julga). Imaginar é  contemplar a figura; Ideia é conteúdo do pensamento. O espírito percebe a cera, a coisa extensa, inata, clara e distinta; a razão tem capacidade (potência) nas ideias.

"Penso que a cera é capaz de receber mais variedades segundo a extensão do que jamais imaginei" (concepção infinita dos corpos). "O pensamento puro é o único capaz de fazê-lo". "A imaginação não pode dar a conhecer a natureza dos corpos" (esse é o objetivo da contraprova: a certeza do pensamento é o que prevalece contra a tradição tomista-aristotélica; ver parágrafo 10).

Inspeção do pensamento (entendimento): a cera/substância concebida pelo entendimento/espírito (no ato), ou seja, sua percepção, ação pela qual é percebida: de forma imperfeita e confusa (pelos sentidos) ou clara e distinta (pelo pensamento); explica Descartes: "sua percepção" (...) "pode ser imperfeita e confusa, como era antes ou clara e distinta como é presentemente, conforme minha atenção se dirija mais ou menos às coisas que existem nela [cera] e das quais é composta".


14) Crítica à linguagem comum: Descartes critica os erros da linguagem, falta clareza e distinção nas definições; há confusão nos termos das definições que levam o espírito ao erro: "dizemos que vemos a mesma cera" (...) "e não que julgamos que é a mesma, pelo fato de ter a mesma cor e a mesma figura". As palavras, os nomes enganam quanto ao uso do termo comum. E é tão só pela inspeção do espírito que julgamos as coisas (a razão dá unidade a multiplicidade). Julgamos aquilo como verdadeiro e assim compreendemos, "somente pelo poder de julgar que reside em meu espírito".

15) A ideia clara e distinta (o sentido exato do 'pedaço de cera'): "duvidar das formas e dos termos" (...) "nada posso conhecer através da percepção (sentidos) ou da imaginação sem compreender (ou reconhecer), através do pensamento, a essência da coisa". Não se trata aqui de possuir o conhecimento da essência da coisa, "mas saber em quais condições posso estar seguro de possuir a ideia clara e distinta desse corpo" (certeza metódica).

Dois sentidos de existir: movimento na matéria (homens e animais) X consciência sensível (o pensamento no homem). O homem capaz de atos cognitivos de conceber e julgar (modos do pensamento). Para Descartes, a percepção do mundo tem origem na razão: a intelecção é uma condição para a sensação (o modo); a cera com origem no intelecto: existe um espírito que percebe. 

A forma de conceber: conhecer pelos sentidos exteriores, senso comum (poder imaginativo), não distingue os homens dos animais, mas a inspeção do pensamento, capaz de distinguir a coisa de suas formas exteriores (uma identidade naquilo que é múltiplo), deixando-a "nua", é exclusivamente forma de conceber do espírito humano: "Os acidentes são contingentes em relação a substância, mas não a acidentalidade". 

16) Confirmação da segunda certeza (uma coisa pensante): o Sujeito de Consciênciao espírito que percebe seus diferentes modos; análise precedente. O espírito é a condição para o sensível, ou seja, o pensamento é indispensável ao conhecimento da coisa. Quando percebemos clara e distintamente a natureza da coisa, apenas pensamos percebê-la: "quando percebo o pedaço da cera" (...) "só uma coisa é certa" (...) "É que eu penso percebe-la" (...) "eu próprio sou, ou que existo pelo fato de eu a ver". Há um espírito que precedea priori, indispensável ao conhecimento da coisa: "mas não pode ocorrer, quando vejo ou (coisa que não mais distingo) quando penso ver, que eu, que penso, não seja alguma coisa". 

17) A terceira certeza (a natureza do meu espírito é mais simples): "o espírito é mais fácil de conhecer do que o corpo", ou seja, "obtenho imediatamente o conhecimento da existência e da natureza do meu espírito". Pois, quando vemos ou pensamos que vemos, possuímos apenas a ideia clara e distinta de corpos cuja "a existência ainda é problemática", confusa e obscura.  O conhecimento da alma é o mais fácil dos conhecimentos, "é a mais fácil das verdades científicas e o primeiro dos conhecimentos na ordem das ciências".

A percepção da cera não provem da abstração sensível, mas ato a priori a noção do corpo: "todas as razões que servem para conhecer e conceber a natureza da cera, ou qualquer outro corpo, provam muito mais fácil e evidentemente a natureza de meu espírito". Extensão, noção da essência da existência corpórea, existe no espírito. Epistemologicamente: a natureza do pensamento está no próprio espírito.

18) Tese Epistemológica: o conhecimento do espírito é anterior ao do corpo. Segundo Descartes, a partir da indubitabilidade do conhecimento alcançado somente pelo pensamento, pois o que conheço prioritariamente são meus atos, é prova cabal que o conhecimento do espírito precede ao conhecimento sensível: "só concebemos os corpos pela faculdade de entender em nós existente e não pela imaginação nem pelos sentidos" (...) e "somente por os conceber pelo pensamento, reconheço com evidência que nada há que me seja mais fácil de conhecer do que meu espírito".

As três certezas aqui reveladas:
1. parag. 4: "Eu sou, eu existo", a existência enquanto pensamento;
2. parag. 7 e 9: "uma coisa que pensa" (sujeito de consciência): a natureza desse Eu é puro pensamento revestida de seus diferentes modos: imaginar, sentir, querer...
3. parag. 17: "o espírito é mais fácil de conhecer do que o corpo".

Na sequencia: Eu existo -> uma coisa pensante -> o pensamento (espírito) é mais simples.
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ContinuaRené Descartes, Meditações III (parag. 1-9) - O plano da meditação
Texto Anterior: René Descartes, Meditações I - Duvidando para recomeçar
Texto Completo: René Descartes (1596 - 1650)
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[1] Descartes, René (1596-1650). Meditações; introdução de Gilles-Gaston Granger; prefácio e notas de Gérard Lebrun; tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Junior. - 3. Ed. - São Paulo : Abril cultural, 1983. Os Pensadores.

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