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quarta-feira, 15 de outubro de 2014

René Descartes, Meditação III (parag. 1-14) - Luz da Razão.

Giodano Bruno enfrentando a inquisição [1]

Na Terceira Meditação, Descartes 'prova' a existência de Deus. Faz três demonstrações: Luz da Razão, Princípio de Causalidade e Criação e Conservação (ato). Neste fiched trataremos da Luz da Razão.

Luz da Razão (a essência precede a existência): as representações da existência, da 'realidade objetiva', se estabelecem sobre a égide do argumento ontológico, luz da razão, algo na essência que determina o plano da meditação, o método, o caminho a seguir, a priori, a partir da vontade que "se dirige livremente (pois isto é de sua essência), mas no entanto de modo infalível, ao bem que lhe é claramente conhecido" (DESCARTES, 1983, 172), pois 'percebe' que no "conceito de um ser soberanamente perfeito está contida a perfeita e necessária existência" (DESCARTES, 1983, 173)

Princípio de Causalidade: a partir do argumento ontológico, Descartes avança com "a aplicação do princípio de causalidade ao conteúdo das ideias", procurando determinar o quanto de realidade objetiva existe na própria ideia (quanto mais realidade objetiva, mais quantidade de ser), ou seja, a partir da noção de perfectibilidade (máxima realidade objetiva), a causa (um deus infinito e perfeito), explica o efeito (o homem finito e imperfeito, porém dotado da ideia de infinitude e perfeição). E esclarece o filósofo: "a ideia de um ser soberanamente perfeito, a qual se encontra em nós, contém tanta realidade objetiva, isto é, participa por representação em tantos graus de ser e de perfeição, que ela deve necessariamente provir de uma causa soberanamente perfeita" (DESCARTES, 1983, 81).

Criação e Conservação (no efeito): o filósofo aplica o princípio da causalidade ao homem. Compara essa relação a "uma máquina [qualquer] muito artificial cuja ideia se encontra no espírito de qualquer operário". Assim como o "artifício objetivo dessa ideia (...), a ciência do obreiro" revela-se em seus efeitos, sua obra, também nos mostra como "é impossível que a ideia de Deus que em nós existe não tenha o próprio Deus por sua causa" (DESCARTES, 1983, 81). Em seguida, determina a natureza do tempo de Deus, 'ato' de criação e conservação: em um mesmo instante, criação e conservação, origem e existência no homem. Deus: "virtude de ser e existir por si" (parág. 35), e a ideia de que este ser "soberanamente perfeito, isto é, Deus, é em mim". (parág. 37).

Luz da Razão: princípios do argumento ontológico ou Prova a Priori.

Recapitulando a cadeia de razões cartesiana.

1) Uma coisa que pensa: aos poucos, gradualmente, desligando-se dos sentidos, considerando apenas seu interior, Descartes chega a seguinte conclusão: "Sou uma coisa que pensa" e, enquanto pensa, duvida, afirma, nega, conhece, ignora, ama, odeia, quer, não quer, imagina e sente (estes que são os modos do pensamento); e "nada fora de mim". A partir das razões de duvidar, a certeza do cogito.

Ponto de vista cognitivo positivo (interior): "sou uma coisa que pensa" (análise interna de verdade, relação de ideias); "sentimentos e imaginação somente na medida que são maneiras de pensar";
Ponto de vista cognitivo negativo (exterior): "desviar-me-ei de todos os meus sentidos" (...) "todas as imagens de coisas corporais" (suspensão do juízo). 

2) Regra geral de verdade: a partir de uma análise interna (do pensamento), Descartes estabelece uma nova maneira de conhecer: uma regra geral de verdade a partir do 'cogito' (parag 4, Medt I); uma regra geral para algo que conhecemos de maneira certa: "todas as coisas que concebo mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras".

A regra geral de verdade é um método que tem a razão como procedimento, e que procura conhecer não a natureza da coisa, mas um modo de agir relacionando ideias ordenadas pelo pensamento. O objetivo final: a ideia da existência de Deus. Em resumo, a partir da certeza do cogito, do pensamento (Eu penso -> o Homem pensa -> Tudo que pensa é), Descartes estabelece uma regra que possibilita atingir certezas objetivas (validade subjetiva, temporal), a regra geral; ou seja: a partir de "uma clara e distinta percepção daquilo que conheço", até chegar a ideia de Deus (realidade formal, atemporal).

3) Sentido, hábito, imaginação (o erro vindo de fora): todavia Descartes apresenta sua objeção às representações objetivas sensíveis, ao fato. Declara ter sido enganado quando reconheceu serem duvidosas e incertas coisas que antes acreditava serem verdadeiras. "Coisas que percebia por intermédio dos sentidos" e coisas que afirmava devido ao hábito (representações da imaginação). Todas essas coisas vindas de fora de si mesmo. A dúvida dos sentidos não atinge a regra geral de verdade.

4) Ideia Inata (o acerto vindo do interior): após refletir sua cadeia de razões graduais, que oscila entre dúvidas (dos sentidos, hábitos, imaginação e do deus enganador), e certezas (a consciência da percepção que pensa sentir sonhando ou acordada, também presente nas coisas simples no tocante à aritmética e à geometria), Descartes, em fim, conclui que não poderá ser enganado "enquanto eu pensar que sou algo", no ato, no exato momento que percebe as coisas claras e distintas (conteúdo atual), as quais "não podem ser de outra maneira senão como as concebo"; ou seja: a partir de uma ideia inata de extensão flexível e mutável é que podemos perceber o corpo.

Um ponto de apoio: há um caráter extrínseco na aritmética e na geometria, mas, no exato momento que considero o conteúdo da matemática (ideia inata de extensão flexível e mutável), percebo que algo existe de imediato (modo intrínseco, essencial), inabalável temporariamente, como uma regra de certeza subjetiva e temporal, (uma evidência na matemática, um ponto de apoio, um axioma); que poderá vir a si concretizar como uma regra de verdade objetiva e atemporal (uma evidência no espírito: ex. cogito). Guéroult alertava, em alusão a Descartes, para que não deixássemos a atenção se desviar do objetivo, quando o "espírito deixa de fixar-se no cogito para se dirigir alhures, este ponto de apoio se abisma na noite da dúvida universal, arrastando consigo toda a cadeia de razões".


Cadeia de razões graduais
(1) Descartes primeiro recobra a precisão e clareza que há na matemática (realidade formal); 
(2) mas, logo em seguida, acredita que pode estar sendo enganado. Estende a dúvida matemática à possibilidade de um Deus enganador  (dúvida absoluta), do poder de um Deus de se apresentar em seu pensamento; 
(3) para finalmente concluir que sua única certeza verdadeira está no pensamento: "sou quando penso".
(4)  o cogito (pensar) é o seu único ponto de apoio para a ciência.

5) A questão de DeusDeus legitima a ideia da coisa com a essência (o ideal, aquilo que permanece) e a prova de Deus constata que o erro sistemático não existe. Neste parágrafo Descartes propõe um método a ser seguido: a) Se há um Deus (a essência); b) Se ele pode ser enganador (a representação). A ordem da meditação propõe passar de forma gradual das noções do espírito (mais simples) "para aquelas que aí poderei encontrar depois" (mais complexas).

6) Exame dos Termos (parags. 6 a 9): os diversos gêneros (modos do pensamento) da sua cadeia de razões.

a) Imagem não é cópia, seja de uma figura material ou imaterial. A cópia traz a extensão do original.

Descartes se utiliza do termo 'imagem' apenas como uma comparação destinada a explicar uma função da ideia, diferente de seu contemporâneo, Hobbes, para quem 'imagem' está relacionada com "coisas materiais pintadas na fantasia corpórea" (sensitiva), o que, segundo Descartes, "é-lhe fácil mostrar que não se pode ter nenhuma ideia própria e verdadeira de Deus nem de anjo", pois não teríamos o original.

- Ideia sensível: imagem ocasional, percepção imediata + poder inato de apresentar ideias (faculdade inata);
- Ideia imaterial (Deus): a razão não pode ser a causa de Deus, senão o próprio Deus.  

b) Ideia - "imagens das coisas": realidade formal, percepção passiva, representação de mundo exterior. São percepções que se referem a algo (conteúdo representativo) fora da mente.

c) Modos - "outras formas": realidade subjetiva, vontades e juízos ativos (atos mentais) na ação, referência de mundo interior. 

d) Conteúdos - "ideia que tenho daquela coisa": realidade objetiva, exibem elementos das ideias (mais simples) e dos modos.

e) Atos Volitivos (vontades ou afecções) e Juízos:
- Volitivos: atos e atitudes acrescentadas à ideia. Não exibem conteúdos. Supõem a ideia, ou seja, dependem das ideias para as inclinações. Não têm valor de verdade.
- Juízo: quando afirmo ou nego a ideia (valor de verdade). Quanto à sua origem, acontece extrínseca a própria ideia: falsidade formal; ou no conteúdo da própria ideia: falsidade material.

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A ideia exibe um conteúdo, uma representação da imagem da coisa: "são como imagens das coisas" (realidade formal/passiva) e referencial (realidade subjetiva/ativa: vontades ou afecções e juízos). 

Esses conteúdos "imagens das coisas", não são mais que uma composição entre algo distinto e independente da mente (realidade formal/representação) com a ideia que eu tenho da própria coisa, como quando "concebo uma coisa como o sujeito da ação do meu espírito" (realidade subjetiva). Portanto, ideias exibem conteúdos: representação que tenho da coisa (percepção da alma, passiva), mais minhas referencias (vontades e juízos, alma ativa: o eu na ação: "que eu quero, que eu temo, que eu afirmo ou que eu nego").

Os conteúdos das ideias trazem em si os elementos da realidade objetiva: composta de realidade formal (ideia simples) e realidade subjetiva (os modos), quando "uma ação do espírito se acrescenta às ideias".
Realidade Objetiva: a representação do mundo exterior, mundo objetivo.
Realidade Subjetiva: as referências do mundo interior, subjetivo, as próprias ideias simples da coisa com as vontades ou afecções e os juízos determinados pelas ações do espírito. Modo simples de pensar: eu quero, eu temo, eu afirmo, eu nego/não nego... 

Pausa para relembrarmos o conceito de 'extensão' (parágrafo 12, Meditação II):
res extensa - a mesma cera permanece e se modifica (como quando aproximada do fogo): "Um corpo que um pouco antes me parecia sob certas formas e que agora se faz notar sobre outras". Mas eu sou capaz de perceber coisas diferentes, posso julgar a priori: uma ideia de extensão inata que não depende da sensibilidade (assim como na matemática). Há semelhanças entre a cera que permanece e a realidade objetiva que existe na própria ideia.

ideia de corpo extenso inata, puramente intelectual (ter ideias e julgar), revela que há uma inteligibilidade em qualquer percepção sensível: o ato de pensar é o que me possibilita antecipar mudanças. Percebo então algo que permanece e algo distinto, "extenso, flexível e mutável", a ideia de extensão do corpo, "capaz de receber uma infinidade de modificações similares". Essa concepção da matéria infinita, o ato de conceber o que é extensão e formar juízo a partir desta concepção, surge no intelecto ("sentir é senão pensar"; II,9). 

Percepção dos sentidos X percepção Intelectual: a percepção é confusa para quando conhecemos a cera nos sentidos; mas existe uma percepção intelectual, a priori, que indica que a "cera é sua identidade na medida em que é coisa extensa"; (...) "mas esse conteúdo só pode ser ideia e não imagem [cópia] da extensão que o corpo ocupa". Descartes conclui no final do parágrafo: "essa concepção que tenho da cera não se realiza através da minha faculdade de imaginar".

7) Ideias X Juízos: as ideias com seus conteúdos, nelas mesmas, não podem ser falsas. Apenas o juízo pode ser falso, quando, a ele, adicionamos um valor de verdade que afirma ou nega. As ideias "não podem (...) "ser falsas" (...) "quer eu imagine uma cabra ou uma quimera"; à realidade objetiva, cabra ou quimera, imponho um juízo de verdade (V ou F).

8) As afecções (estados da alma, paixões): O mesmo acontece com as afecções ou vontades: não é preciso temer que possamos encontrar falsidade; na verdade, nem podemos julgar nossos impulsos originais: "pois ainda que possa desejar coisas más, ou mesmo que jamais existiram, não é por isso, todavia, menos verdade que as desejo".

9) Os juízos (valor objetivo): os juízos podem nos enganar. Ao conteúdo do pensamento podemos acrescentar um valor objetivo, afirmar ou negar o mundo exterior impondo juízos, com ou sem fundamento com a realidade, a todo momento: "O principal erro (...) consiste em que eu julgue que as ideias que estão em mim são semelhantes ou conformes às coisas que estão fora de mim".

10) Ideias do senso comum: seguindo um método investigativo, num primeiro instante, Descartes faz uma crítica da classificação das ideias segundo o senso comum. Qual o valor objetivo das ideias? Algumas "nascido comigo" (inatas); "outras estranhas e vir de fora" (advetícias); outras "inventadas por mim" (fictícias).

11) Ideias exteriores a mim (adventícias): segundo a tradição tomista-aristotélica que será aqui posta em questão: a de que nada há de conhecido que não passa pelos sentidos. Descartes critica o 'senso comum' sobre a origem dessas ideias:

1ª. crítica: que tem origem nos objetos externos, uma inclinação natural às coisas que vêm de fora, ou seja, no tocante aos objetos localizados fora de mim, me obriga a acreditar que essas ideias são semelhantes a esses objetos, e assim dizem que "me é ensinado pela natureza".

2ª. crítica: as ideias sensíveis não dependem da minha vontade: dizem que "essas ideias não dependem, de modo algum, de minha vontade", mas "envia-me e imprime em mim sua semelhança".


12) Crítica ao senso comum X Luz da Razão: três objeções contra o 'senso comum'.

Primeira objeção (inclinação natural X luz da razão): segundo Descartes, a luz da razão é o que faz conhecer o que é verdadeiro: "Impossibilidade de confiar num instinto pretensamente natural" (inclinação natural), pois o que há é apenas "uma certa inclinação que nos leva a acreditar nessa coisa, e não uma luz natural que me faz conhecer que ela é verdadeira", tal qual a revelação racional cartesiana, o cogito, ergum sum ("eu penso, eu existo"): uma ideia clara e distinta; "não tendo outra faculdade, ou poder, para distinguir o verdadeiro do falso".

Reforço a primeira objeção: Descartes se utiliza também de um argumento prático contra a lei dos sentidos: alega ter sido vítima de juízos precipitados e, que ao "escolher entre as virtudes e os vícios", se deparou muitas vezes com o mal: "não me levaram menos ao mal do que ao bem".

13) Segunda objeção: (ideias independentes da vontade): objeção contra que essas ideias tenham por origem uma coisa exterior ao sujeito e, portanto, não dependam da nossa vontade: "nem na independência aparente das ideias adventícias em relação a minha vontade, para concluir que essas ideias têm certamente por origem uma coisa exterior a mim". Descartes argumenta que muitas vezes as inclinações exteriores não estavam de acordo com sua vontade, supõe então, haver "alguma faculdade ou poder próprio", uma vontade interior capaz de produzir essas ideias.

Terceira objeção (a "grande diferença entre o objeto e sua ideia"): há dessemelhança entre o objeto e a ideia: supondo que a ideia tenha "por origem uma coisa exterior", não resulta que lhe seja semelhante (se X é a causa de Y, não resulta daí o juízo objetivo de que Y assemelha-se a X). O exemplo do sol revela como uma visão desatenta nos engana com relação a grande diferença entre o objeto real e sua ideia: temos dois tamanhos para o sol, um "toma sua origem nos sentidos" (vem de fora), que resulta o sol que vemos, um sol pequeno; "a outra é tomada nas razões da Astronomia", a partir de noções formadas "por mim mesmo", concebidas no pensamento, que revelam um sol muito maior.

14) Conclusão das três objeçõesrejeição das ideias adventícias e fictícias1. não confiar nas inclinações externas; 2. não acreditar em ideias sensíveis e involuntárias; 3. não acreditar na semelhança que possa haver com relação aos objetos externos, por conta da sua origem. Nada além do pensamento, das ideias inatas, luz da razão que aponta o caminho para a 'verdade' (ideias claras e distintas): (...) "não foi por um julgamento certo e premeditado, mas apenas por um cego e temerário impulso [inclinação natural], que acreditei haver coisas fora de mim". 

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ContinuaRené Descartes, Meditações III (parag. 15-28) - Princípio de Causalidade.
Texto Anterior: René Descartes, Meditações II - A natureza do espírito humano
Texto Completo: René Descartes (1596 - 1650)
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[1] Descartes, René (1596-1650). Meditações; introdução de Gilles-Gaston Granger; prefácio e notas de Gérard Lebrun; tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Junior. - 3. Ed. - São Paulo : Abril cultural, 1983. Os Pensadores.

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